Vou postar meu humilde conto então, em meio ao ruído dos colegas bêbados...
Andava cabisbaixo pela calçada de pedras portuguesas enquanto procurava algum resto de comida largado entre as frestas. A tarefa de subsistir não o impedia de matutar sobre sua condição existencial. Melvin praguejava principalmente sua fraca compleição física. Era um pombo franzino de plumas ralas, coloridas num estranho padrão malhado, coisa indefinida que lhe dava a impressão de ter sido pintado ao acaso, pelas mãos de um pintor porcalhão ou de uma criança de três anos. Como pombo mirrado que era, restava-lhe se contentar com os grãos que sobravam da abundante semeadura ofertada pelos aposentados toda manhã. Sempre era segregado aos empurrões quando tentava afoitamente comer junto ao bando.
Tinha na vida uma dádiva que, todavia, parecia aos olhos alheios como uma maldição: a amizade de Igor, o pombo mais astuto e imponente que as ruas do Rio já viram. Como a luz e a sombra projetadas por uma lanterna chinesa, o par convivia reforçando reciprocamente suas identidades. Vê-los lado a lado não deixava de ser um espetáculo intrigante do qual saltava uma indagação sobre a justiça distributiva Divina na gênese de suas criaturas.
Os dois haviam sido criados juntos em meio ao burburinho da Praça Saens Peña. A cada dia que Igor crescia em porte e vigor, Melvin parecia murchar como uma passa. Mas nunca houve inveja ou piedade entre os dois, amavam-se fraternalmente e ponto.
Naquela dia frio, Melvin resolvera dar cabo de si, havia cansado do destino que lhe fora entregue. Na última semana havia cortejado várias fêmeas da área. Todas as tentativas resultaram em frustração ou, ainda, humilhantes enxotadas desferidas por concorrentes mais adaptados segundo a fria lei da evolução das espécies. Pensou que como não procriaria, não havia razão nenhuma para continuar a coletar restos e defecar nos transeuntes, coisas que já o enfadavam fazia tempo.
Catou uma batata palha perto da carrocinha de cachorro-quente, deu-se por satisfeito e levantou vôo rumo a laje que recobre o buraco de acesso à estação do metrô. Lá de cima viu os homens, pensou como podiam aqueles seres bípedes sobreviver e multiplicarem-se tanto se nem asas tinham. Para se deslocar entravam em barulhentas caixas de ferro. Eram feios. Simpatizava apenas com aqueles enrugados que lhes jogavam milho e farelo de pão de manhã. Nesse instante decidiu como abandonaria esse mundo. Já havia visto um colega ser esmagado pelos pés das caixas de ferro ambulantes, não ouviu um arrulhar que fosse, pelo que concluiu que não sofrera nenhuma dor o finado. Vôou em direção ao trânsito e pousou tranquilamente no asfalto quente.
Do outro lado da rua, Igor, que assustava com o peito estufado alguns incautos que tentavam lhe acompanhar na refeição, olhou de soslaio e viu seu amigo estático em meio ao tiroteio de bólidos metálicos.
Não pode entender o ocorrido e como única resposta alçou vôo para parar ao lado daquele que sempre fora sua inseparável sombra. Fitou-o já com olhos marejados de aflição. O que queria Melvin com aquele despropósito? Ficara louco? não percebia o perigo ao seu redor? Do seu corpo a angústia brotava na forma de passos tensos, lançados a esmo no meio daquele trágico palco.
O franzino entendeu naquele momento que, ainda que não encontrasse sentido em si, fazia parte de uma rede maior. Não era justo que estragasse o delicado bordado das cegas rendeiras do destino.
Não partiu, ficou entre nós mais um pouco, extasiado pela descoberta de sua nova condição.
PS: Esopo e La Fontaine que me desculpem pelo sem jeito
________________________________________

_________________________________________
Sobre o papo das diferentes violências do Rio e do Recife e tal, queria saber se as granadas que tenho ouvido explodir lá perto de casa se enquadram na categoria armas de fogo nas estáticas citadas pelo Del Samba ou se já criaram uma categoria tipo "vítimas por armamento de guerra"?
_________________________________________________
Abçs e não deixem de me chamar para as saídas, pois parece que o Manel na sexta morreu.
O garçon não traz seu comment?! Comenta aqui!!...
Mais uma dose do Anônimo, no balcão às: 11:27
