A grande inimiga da arte é a vaidade.
Todo artista é um gênio. Ou se acredita assim, ainda que sua genialidade esteja circunscrita a um quintal ou a um botequim. E grande parte dos gênios não sai da garrafa.
Mas pior do que quem se diz artista é o amigo de quem se acha artista. Esse é incansável. Discursando nos bares, levanta diariamente estátuas em praça pública, reconhecendo a arte revolucionária do amigo, o que leva o homenageado quase de uma ereção à outra. É bom à beça. Quem não gosta de ter o seu Walter Ego massageador?
Inventa reuniões, bola projetos, indaga sobre o andamento da próxima obra, descola endereços, força publicações, encomenda elogios, cava espaços, aluga tempos, decora textos, comenta frases, joga pesado contra a incompreensão de todos e a indiferença de alguns.
É quase a segunda sombra do artista, uma espécie de anjo ou cão de guarda tutelar. Um anjo bêbedo, mas nem por isso displicente ou desatento. Um cão vadio, mas nem por isso menos feroz. A bebida ingerida não lhe afoga a divindade ou adormece a vigilância. Nele se juntam, a um só tempo, a sede e a vontade de comer. E, não raro, vive rosnando para a sua circunstância e lambendo a mão do dono.
Tem-se a nítida impressão de que ele há muito tempo já está preparando a biografia do amigo. Sabe tudo sobre o artista: onde e quando nasceu, de quem com quem, onde passou a infância, sua primeira experiência sexual, quando começou a produzir, quem o influenciou, paixão clubística, hobby e idiossincrasias.
Aconselha, quando pode; aparece, quando quer. E o artista se sente feliz com ele ao lado, eterna mala de turista acidental. Só aborrece, às vezes, quando dá palpite sobre a obra. Até porque a opinião que o chato reproduz são ecos do chamado senso comum, que sua orelha parabólica filtra aqui e ali, em conversas descosidas e comentários casuais, na mesa dos bares da periferia.
Em questões de amor, porém, nunca opina. Isso é particular. Apenas sorri um sorriso de cumplicidade. Quando o artista se separou da primeira mulher, quem é que serviu de confidente, quem? Ele. Ele e o seu proverbial silêncio, nessas horas.
O único comentário que fez com o semi-deus foi respeitoso:
- Puxa, cara, aquilo não é mulher de se jogar fora, não.
E quando o artista, no auge da solidão e desamparo, instou:
- Que é que você acha, ô Sombra? A Selminha tá querendo que eu pague pensão. Você acha que eu devo ou não pagar pensão pra ela?
Ele pensou alto:
- Pagar pensão? Tá louco, sô! Nem pensão nem meia pensão. Aquilo é mulher de selfservice. Tu tem que pagar é um restaurante.
A opinião desabusada, dada assim na bucha, tal a veemência, fez o ídolo ficar cabreiro e arredio.
Por causa disso, a amizade ficou um pouco estremecida.
Mas logo, reacendeu, quando o artista chegou rebocando pelo braço a sardentinha e mostrou ao Sombra o seu último poema concreto.
O poema era tão concreto que não dava para ver o vergalhão abstrato da poesia.
Até mais...
O garçon não traz seu comment?! Comenta aqui!!...
Mais uma dose do Anônimo, no balcão às: 16:32
