Epidemia de Conjuntivite no Rio de Janeiro, cronicazinha cai bem...
Bolinho
O garoto achegou sua pobreza descalça ao balcão:
- Moço, paga esse bolinho pra mim?
O homem olhou para o moleque, deu um sorriso e resolveu fazer humor negro:
- Que nada, menino! Depois a sua mãe vem aqui brigar comigo. Já se viu ficar enchendo a barriga com bobagem antes do jantar?!
O garoto não entendeu direito. Nem mesmo sabia que o moço conhecia sua mãe. Continuou leso e tornou a pedir.
O homem deu mais um gole no chope e autorizou o garçom a servir um bolinho ao menino. Depois ficou olhando longo tempo aquela figura humana,humilhada e ofendida, entre tantos... Qual seria o seu nome? De onde viera? Que idade teria? Onde morava? Do amor de quem por quem teria nascido?
Nas águas dessas considerações, o homem revisitou de repente a própria infância, longe , em Mendes. Também ele fora menino pobre. Também ele se distanciara da família. Também ele migrara. Também ele pedira.
- Brigado, disse o garoto, se afastando.
O homem fez menção de reter o menino, mas desistiu.Pediu outro chope. Que diabo! É preciso parar com sentimentalismos bobos! Pra que diacho aquele garoto lhe esfregara nos olhos a sua meninice? Por que jogar diante dele um passado já devidamente sepultado no barro das lembranças? Com que direito aquele pivete sacudia diante dele a sua filiação ignorada? Nunca ele sentira tanta falta da mãe, como nessa hora. O pai, não, que esse sempre fora uma sombra diluída nos longes da memória. De repente, ele lembrou todos os parentes.
Pagou a conta e saiu mastigando uma raiva surda contra o mundo. Decididamente, estava com o dia estragado. Maldita hora em que parou naquele botequim.
Entrou no banco, fez todas operações de contabilidade rotineira de balcão: depósito, vista de saldo, retirada, conversou com o caixa distraidamente e saiu.
Na rua, deu de olhos outra vez no garoto. Lá estava ele, na calçada em frente, com mais dois meninos iguais. Dividia com eles o bolinho.
Então, outra vez seus olhos o atraiçoaram: trouxeram lentamente para diante dele a imagem de seus dois irmãos mortos, ainda meninos, no desastre de trem em Mangueira...Naquele dia, só ele não saíra para vender doce no trem. Tinha apanhado caxumba. Não pôde sair.
Pensou então toda a sorte de pensamentos tolos com que a sociedade justifica os desníveis sociais de suas camadas. Pensou em sua mulher, pensou nos filhos, pensou no carro novo, na firma que ia bem obrigado. Pensou no esforço do estudo noturno, no seu primeiro emprego, nas oportunidades aproveitadas, sabe lá Deus como. E talvez porque o dia fosse quente, talvez porque estivesse de óculos, sentiu um ardor de lágrimas nos olhos.
- Que é isso , cara? Ta chorando?
- Nada não. Conjuntivite.
Hoje tem samba do bom no Centro Cultural Carioca, comemorando o aniversário do grande primo-sambista-compositor-ensaísta-escritor Nei Lopes... Eu estarei lá para dar um abraço no meu grande ídolo... Até mais tarde, meu irmão! Para aqueles que não conhecem, uma breve biografia...
NEI LOPES, carioca do irajá, nasceu em 1942,é compositor e escritor. Formado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil(como todos deste bar...),atual UFRJ.No início dos anos 70 abandonou a recém –iniciada carreira de advogado para dedicar-se à publicidade, à literatura e à música popular. Como músico, é ligado as escolas de samba Acadêmicos do Salgueiro e Unidos de Vila Isabel, sendo autor de celebrados sambas, gravados a partir de 1972, por intérpretes como Alcione, Clara Nunes, Beth Carvalho, Elizeth Cardoso, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, entre outros. Como teórico da música popular brasileira, publicou, várias obras.Em 1975, integra com Wilson Moreira, uma das mais festejadas duplas de compositores do samba, responsável por sucessos como Senhora Liberdade, Gostoso Veneno e Goiabada Cascão.
Resumindo, Nei Lopes é coisa fina sinhá, que ninguém mais acha...
Em sua homenagem primo, deixo registrado aqui num cantinho deste bar, um samba seu, antológico e saudoso...
SAMBA DO IRAJÁ
Tenho impressa no meu rosto
E no peito, lado oposto ao direito, uma saudade.
Sensação de, na verdade, não ter sido nem metade
Daquilo que você sonhou.
São caminhos, são esquemas, descaminhos e problemas:
É o rochedo contra o mar.
É isso aí! Ê, Irajá!
Meu samba é a única coisa que eu posso te dar.
Saudade veio à sombra da mangueira
Sentou na espreguiçadeira e pegou no violão
Cantou a Moda do Caranguejo
Me estendeu a mão prum beijo e me deu opinião.
(“Pinião,pinião”)
Depois, tomou um gole de abrideira
Foi sumindo na poeira para nunca mais voltar.
É isso aí! Ê, Irajá!
Meu samba é a única coisa que eu posso te dar.
E pra finalizar, um soneto...
O AMOR QUE CANTA EM MIM
O amor que canta em mim é tão bonito,
tão cheio de ternura e de esperança
que, à paz de sua sombra imensa e mansa,
descansa o sentimento de seu mito.
O amor que canta em mim é como o grito
que corta o abismo escuro em que se lança
e mede a face neutra do Infinito
com o eco da memória sem lembrança.
O amor que canta em mim é vário e é tanto:
reúne em sua voz tantos segredos,
sepulta em seu pudor o próprio espanto...
Triste é ouvir seu canto livre e incerto:
saber que me povoas com teus medos
e ver que em meu redor mora um deserto...
Até mais...
O garçon não traz seu comment?! Comenta aqui!!...
Mais uma dose do Anônimo, no balcão às: 00:02
